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Mostrando postagens de agosto, 2017

O fruto sazonal do trabalho

Ele acorda às quatro da manhã. Já arou a terra, plantou a semente, regou. Esperou o tempo passar. Aliás, o tempo é seu parceiro de trabalho. O plantio foi no tempo certo, a colheita tem dia marcado. É pontual, há um compromisso, um contrato assinado com as estações. O homem do campo harmoniza o trabalho com a vida. Tem a idade para começar, dominar os processos, ensinar os filhos, gerenciar. A terra espera por ele e ele espera pela terra. O homem da cidade tem muito a aprender. Não há acordo na cidade, apenas cobranças. O tempo é seu inimigo. O resultado tem que vir. É uma caçada não um cultivo. O homem da cidade, tão moderno, ainda vive nas cavernas e sai para caçar. E não há caça suficiente. Alguém vai sair perdendo. Soma-se ao sangue do bicho o sangue do outro, todos morrem. É preciso reconectarmo-nos com o tempo, fazermos as pazes com as estações, reatarmos nossa existência com o próximo. O trabalho tem que dar fruto não fazer vítimas. Há uma diferença muito grande entre

Graça

Ela se odiava. Odiava sua imagem, seu peso. Sua cor. Odiava o modo como viva. Sua casa, suas roupas. Se odiava pelos amigos que não tinha, pelos lugares que não frequentava, pelo amor que não veio. Mas principalmente, por todos aqueles que vieram e partiram, deixando-a fragmentada, fragilizada, enfraquecida, grávida. Sua família não aceitava. Queria ser a família perfeita. O que, na prática, significa não ter nenhum pecado aparente. E o pecado como na história, reverbera em d ... ores de parto. Ela culpava a todos, culpava os homens, culpava o mundo e se culpava. E a culpa, de nada adiantava, só doía e doía dilacerando-a de dentro para fora. Até que chegou a Graça. Com seus olhinhos de jabuticaba já abertos. A menor boquinha do mundo em busca das tetas grandes demais de sua mãe. Graça não se importava com isso, não se importava com nada. Sua mãe era seu mundo, tudo o que ela conhecia e bastava. Seu amor não tinha preço e não custava nada. Tão pequena, tão frágil, tão inocente, tão p

Assalto

Já tem um tempo desde a última vez que fui assaltado. Era pra lá de dez horas. Eu estava sozinho no ponto de ônibus na Vila Maria depois de uma noite de trabalho. O comércio já estava fechado e não havia uma viva alma em qualquer direção que se olhasse. Senti um pouco de culpa por não ter evitado aquela situação. Quem mora em São Paulo já fica com a pulga atrás da orelha. O assalto comigo é sempre do mesmo jeito: O ladrão anuncia o assalto, eu dou o dinheiro e ele vai embora. Sem reação, sem susto, sem desespero. Nunca pensei sequer na possibilidade de morrer. O cara quer o dinheiro, e eu, como sempre ando com uns trocados rasos, não faço nenhuma questão. Vou, entrego e pronto. O que ele vai fazer com aquilo? Comprar uma pedra? Na verdade, dou o dinheiro com um pouco de compaixão. O desgraçado não consegue nem bancar a merda do vício. Ainda por cima, assalta alguém no ponto de ônibus, ou seja, um pobre. Esse aí nem no crime tem futuro. Eu tenho, além dos trocados, um futuro, um

Marajá

Estive pensando sobre como é ser um marajá. Viver de sombra e água fresca. Acordar tarde, dormir a hora que quiser, não ter que trabalhar um dia sequer. Deitar na rede ao entardecer com um drink na mão, chinelo no pé. Me espreguiçar gostoso. Bocejar até as orelhas estalarem. Sem preocupações, sem compromissos, sem horários, sem agenda, nada. Assistir TV até os olhos arderem. Dormir e só levantar quando sentir fome, comer e tirar uma pestana para fazer digestão. Sair por aí sem ter para onde. Dia após dia fazer nada vezes nada. Nada para hoje, nada para amanhã... Eu trocaria o dia pela noite só por ver. E destrocaria quando enjoasse. Aliás, enjoar é o que eu mais faria. Enjoado de ficar em casa, sairia. Enjoado de sair, voltaria. Enjoado de ficar parado, caminharia. Enjoado de caminhar, correria. Pensando bem, acho que enjoaria até da mamata. Inércia não é sinônimo de felicidade. Há certa dose de felicidade em ocupar-se. Acho que é por isso que dizem que Deus inventou o trabalho.