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Mostrando postagens de junho, 2018

Poema do recado

Antes de o sol nascer, o galo veio dizer que há muita coisa pra fazer, ela deve levantar. O café do marido, as roupas para o trabalho e um beijo definem bem o seu lugar. A sujeira na casa, a mobília e a vida lhe obrigam a se curvar. Pela rua até o mercado, caminha a mulher de José. Anônima como muitas mulheres, existindo à sombra de seu lar. O caderno do seu Joaquim diz que ela deve cem mangos. As dores nos pés e nos dedos alertam o sobrepeso das sacolas que está carregando. A vizinha, dona Lurdes, acena como de costume da beirada da janela. Pobre velha esclerosada, já tentou pular duas vezes, quebrou a bacia e a canela. Já em casa novamente, a moça se vê de repente, sozinha e muito cansada. Senta de perna cruzada, no sofá em meio à sala, já não aguenta mais aquilo. Por um instante fecha os olhos, pensa no dia e na sorte daquele momento tranquilo. Quando um brilho reluzente, um fetiche de luz estridente diz seu nome da vidraça. — Maria! Disse a voz. Escute meu

Rico X Pobre

O rico tem sua felicidade baseada nas circunstâncias. Óbvio, as circunstâncias o favorecem. O pobre tem sua felicidade nas coisas simples da vida (Que são as que realmente importam). O rico teme o sequestro. O pobre não sofre ameaça (Já dizia um velho sábio). O rico ama suas coisas porque lhe são muito preciosas. O pobre ama as pessoas que lhe são preciosas. O rico se jacta daquilo que possui. O pobre, de quem é. O acúmulo de bens vem acompanhado de muitas preocupações. O pobre vive o dia chamado hoje. Se o seu objetivo na vida é ser rico, a sua ética, a sua moral e a sua consciência estão em risco. Se o seu objetivo é fortalecer a sua ética, preservar a sua moral e tranquilizar a sua consciência, deve reconsiderar o desejo de ser rico. O rico goza os prazeres terrestres. O pobre desfruta as alegrias celestiais. O rico tem amigos muito poderosos. O pobre é amigo de Deus. O pobre não é superior moralmente ao rico, mas pelo menos, tem uma

Amar é diferente de gostar

Amar é diferente de gostar. A máxima não é minha, mas concordo plenamente com ela por várias razões. Primeiro que o amor é algo que devemos ter por todas as pessoas. Na verdade eu diria que amar é a única coisa que devemos na vida. Esqueça tudo o que disseram que você deve. Ninguém deve nada, a não ser amar. Por exemplo, devemos amar o inimigo. Eu posso não gostar de uma pessoa, mas se ela estiver passando por uma situação difícil e eu posso ajudar eu vou ajudar. O Bono Vox disse uma vez que os moralistas americanos queriam culpar os aidéticos por contraírem o vírus. Ele disse que isso seria semelhante a ver um acidente de carro e, ao invés de prestar socorro, apontar o dedo na cara do ferido e culpa-lo por dirigir embriagado. Ora, primeiro a gente presta socorro, depois vai conversar se precisar. Devemos amar os criminosos. Como? Garantindo um julgamento justo, humanizando os presídios para que o preso seja devolvido à sociedade reabilitado e não pior do que quando

Dor

Dor que se sente na alma não pode ser evitada. Diferente de qualquer outra dor em nosso frágil corpo físico, a dor na alma não encontra solução simples. Quando a alma dói, não sangramos o sangue vermelho que corre nas veias. Sentimos, no entanto, escorrer a vitalidade no interior do peito. Ainda que todas as células estejam intactas, sentimo-nos despedaçados. A febre que arde no coração sobe até a cabeça e sai morna nas lágrimas. Não há remédio, analgésico ou endorfina que de jeito. Não podemos amputar um pedaço, massagear ou espetar com agulhas na acupuntura.   A alma não se acessa pela via das coisas tangíveis. Resta à alma doída mudar de estratégia. Sem saída de si mesma, ela tem que encarar o infortúnio com coragem. Encurralada, ela é obrigada a lutar. Enfrentar a sua dor e vencê-la. A mesma alma delicada que se agatanhou, deve criar uma casca no lugar e endurecer. Não há escapatória. Continuar sofrendo está fora de cogitação. O enfrentamento é inevitável,

Padaria, Olfato e Pirocóptero

Dizem que a memória olfativa pode curar amnésia. Através dos cheiros podemos acessar lembranças muito profundas. Foi o que aconteceu comigo essa semana. Eu estava na padaria no domingo de manhã, como não fazia há algum tempo porque costumo comprar o pão para dois dias no sábado (por preguiça mesmo). Então me deparei com um cheiro que não sentia há anos e que me trouxe uma antiga e inusitada lembrança. Não sei explicar qual era o cheiro, mas acho que era uma combinação de pão fresco com queijo derretido na chapa. No domingo cedo, a padaria está lotada de gente não apenas comprando pão, mas também tomando um cafezinho, fazendo lanches matutinos e colocando o assunto em dia. Aquelas mesinhas vazias durante a semana, enchem nesse horário. Em minha viagem olfativa no tempo, lembrei-me do “ pirocóptero ”. Só quem foi criança nos anos oitenta pra noventa sabe do que estou falando. Era uma simples hélice de plástico que vinha junto com um pirulito. Você encaixava a hélice na

Eu sou feliz ao contrário

Ao contrário do que se pensa ser feliz não tem nada a ver com uma vida perfeita. A vida feliz é cheia de penúrias e insatisfações. É sofrendo que a gente aproveita melhor o prazer das coisas simples. Tente ver por este lado, uma criança viciada em doces não se contentará com uma fruta. Pode ser o caqui mais maduro e molinho da feira, ela quererá uma guloseima. O paladar se acostuma com o dulçor e já não se contenta mais com pouco. Vai elevando o padrão. Assim também acontece com a nossa percepção de felicidade. Uma vida muito certinha tende a cair no tédio. Tédio é quando tudo está tão bem que incomoda. Não estou dizendo que se deva buscar o desprazer. Ele virá até você inevitavelmente. Estou dizendo que quando ele chegar você pode vivenciá-lo de uma maneira diferente. O modo como percebemos a vida faz toda a diferença na hora de avaliarmos a nossa felicidade. Essa percepção depende de uma atitude interior. Trata-se de levantar-se com as próprias mãos ao invés de esperar